Mapeamento da Terapia Ocupacional no Sistema Único de Assistência Social do estado do Espírito Santo

 


Descrição da imagem: O plano de fundo da imagem é bege, com textura que se assemelha a uma folha de papel amassada. Na parte superior, na cor laranja, aparece o título do trabalho “Mapeamento da Terapia Ocupacional no Sistema Único de Assistência Social”. Abaixo desta frase, segue o nome das autoras na cor preta “Lalesca Faria Zanoti e Giovanna Bardi”. Na parte inferior, há traços que se assemelham a um mapa. No canto inferior direito, há a ilustração de uma mulher, vestindo bota verde, short rosa, regata verde e mochila laranja, segurando uma folha, como um mapa. A mulher olha para a esquerda, em direção ao nome das autoras.

A Constituição Federal (CF) de 1988, em prol dos direitos sociais, deliberou a assistência social como um direito, desdobrando-se em diretrizes políticas, como a Política Nacional de Assistência Social (PNAS), em 2004 (BRASIL, 1988; 2004).

Em 2005, houve a implementação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), um sistema público único, descentralizado, não contributivo, pautado na organização e normatização da PNAS (BRASIL, 2004). Logo após, no ano de 2009, a Resolução nº 109 do Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), estabeleceu a Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais, organizando a oferta dos serviços do SUAS por níveis de complexidade: Proteção Social Básica e Proteção Social Especial, sendo o último nível dividido em Média e Alta Complexidade (BRASIL, 2014).

Em 2011, a Resolução nº 17 do CNAS reconheceu o profissional de curso superior de terapia ocupacional, dentre outras categorias profissionais, como parte da equipe de referência e/ou da gestão dos serviços socioassistenciais (BRASIL, 2011). Dessa forma, esta Resolução proporcionou o reconhecimento formal da prática efetiva dos terapeutas ocupacionais, que vinha se aprimorando de modo consistente desde a década de 1970, e refletiu a participação organizada desta categoria profissional (ALMEIDA et al., 2012).

Ainda com relação à atuação da Terapia Ocupacional no SUAS, Almeida et al. (2012) relatam que diversos desafios vêm sendo observados no contexto de inserção profissional na assistência social, e essa empreitada pode ser compreendida pelos terapeutas ocupacionais de modo a refletir em dois níveis: no fortalecimento de articulações com os demais trabalhadores da assistência social; e na capacidade de responder a determinadas tarefas, lutas e perspectivas específicas relacionadas ao contexto e à necessidade social da população atendida.

A pesquisa de Oliveira (2020), que se propôs a identificar, descrever e analisar as características da inserção profissional e as práticas desenvolvidas por terapeutas ocupacionais em unidades socioassistenciais que compõem a rede do SUAS à nível nacional, apresentou      como resultado um aumento de terapeutas ocupacionais atuando no SUAS, sendo identificadas algumas características predominantes dos profissionais referentes ao período de realização da pesquisa: a região sudeste era a que possuía o maior número de profissionais atuando no SUAS; a carga horária de trabalho mais frequente era de 30 horas semanais; as mulheres com formação graduada eram predominantes entre os profissionais; e a maioria compunha a equipe técnica de nível superior dos serviços. A pesquisa apontou para a importância de trabalhos que possam analisar dados mais específicos, referentes aos estados e a cada realidade local.

Assim, nesta pesquisa de Iniciação Científica realizada na Universidade Federal do Espírito Santo, objetivamos mapear a inserção dos terapeutas ocupacionais nos equipamentos do SUAS do estado do Espírito Santo de 2012 a 2019, apreendendo dados gerais acerca do trabalho desenvolvido e das características dos profissionais.

Para ter acesso aos dados, utilizamos a base de dados pública “Censo SUAS”, que disponibiliza diversos dados relativos a este sistema. Para extrair as informações analisadas, utilizamos uma das categorias em que os dados são distribuídos no Censo SUAS, que se refere à composição dos “Recursos Humanos”.

A partir dos dados disponíveis no Censo SUAS, podemos perceber que há um aumento progressivo de terapeutas ocupacionais nos equipamentos socioassistenciais do estado do Espírito Santo, passando de cinco, em 2012, para 34, em 2019, conforme podemos observar na Tabela 1:


No ano de 2012, primeiro ano considerado na pesquisa, havia cinco terapeutas ocupacionais que atuavam em serviços de assistência social no Espírito Santo. Destes profissionais, três (60%) estavam em Unidades de Acolhimento, um (20%) em CREAS e um (20%) em CRAS. No ano de 2015, na base de dados Censo SUAS foram inseridas informações sobre Centros Dia e Centros de Convivência, assim notou-se um significativo aumento no número de terapeutas ocupacionais a partir daquele ano. Foram identificados 24 profissionais, sendo que um (4,1%) estava em Unidade de Acolhimento, enquanto os CREAS contavam com oito profissionais (33,3%), os Centros Dia contabilizavam sete (29,1%) e os Centros de Convivência oito (33,3%). Observa-se também que, no ano de 2015, não havia profissionais atuando no CRAS.

Em 2019, identificou-se 34 terapeutas ocupacionais no SUAS, distribuídos da seguinte maneira: seis (17,6%) em Unidades de Acolhimento; 12 (35,2%) nos CREAS; um (2,9%) no Centro Pop; e 15 (44,1%) nos Centros Dia. Os dados relativos aos Centros de Convivência do ano de 2019 não puderam ser acessados e contabilizados por efeito da insuficiência de informações disponíveis no Censo SUAS a respeito deste equipamento neste ano.

Fazendo uma análise da distribuição destes profissionais pelos municípios do estado do Espírito Santo, nota-se uma importante regionalização dos profissionais com o passar dos anos. A Figura 1 mostra quantos profissionais atuaram em cada cidade do estado no SUAS de 2012 a 2019 em números absolutos, na qual podemos observar a predominância de profissionais nas regiões norte, sul e central do estado.

Figura 1. Distribuição de terapeutas ocupacionais no SUAS, Espírito Santo (2012-2019). 

Fonte: Censo SUAS (2020). Organização das autoras.

Se em 2012, os terapeutas ocupacionais, em sua maioria, estavam fora da região metropolitana e da capital, no decorrer dos anos observa-se o contrário: um crescimento notável no número de profissionais atuando na região da capital, principalmente no município de Vitória, enquanto a maioria dos municípios das outras regiões não possui registros da presença de terapeutas ocupacionais no SUAS. No ano de 2019, conforme podemos observar na Figura 2, a concentração de terapeutas ocupacionais nas principais cidades do sul, norte e centro mostram-se ainda mais evidentes:

Figura 2. Distribuição de Terapeutas ocupacionais no SUAS, Espírito Santo, 2019

Fonte: Censo SUAS (2020). Organização das autoras.

Apesar do crescimento notável de profissionais, ressaltamos que 57 (73%) dos municípios capixabas, no período analisado pela pesquisa, nunca tiveram ao menos um terapeuta ocupacional no SUAS. Estes resultados expõem a realidade da maioria das unidades socioassistenciais do estado, com a ausência de terapeutas ocupacionais em todos os serviços. Considerando apenas a cidade de Vitória, com aproximadamente 362.097 habitantes em 2019 (IBGE, 2021), podemos contabilizar cerca de um terapeuta ocupacional no SUAS para cada 27.853 habitantes aproximadamente. Se analisarmos outras cidades no mesmo ano, como por exemplo Cachoeiro de Itapemirim, uma das maiores cidades na região sul capixaba, com aproximadamente 208.972 habitantes segundo dados do IBGE (2021), temos apenas um terapeuta ocupacional atuando no SUAS para toda a população do município.

Quanto aos vínculos empregatícios dos terapeutas ocupacionais, pode-se dizer que, assim como outras categorias profissionais presentes no SUAS, os terapeutas ocupacionais enfrentam cenários de fragilização de vínculos e da precarização do trabalho (BRANDOLT et al., 2020). No ano de 2019, dos 34 terapeutas ocupacionais que atuavam nos equipamentos do SUAS no estado, apenas 32% eram servidores estatutários – concursados ou empregados públicos (CLT). A outra parte se dividia entre trabalhadores temporários, empregados celetistas do setor privado, terceirizados, outros vínculos não permanentes, e trabalhadores de empresas, cooperativas ou entidades prestadoras de serviços. No último ano analisado, portanto, quase 70% dos terapeutas ocupacionais no SUAS possuíam vínculos de trabalho instáveis e fragilizados.

A terceirização no SUAS é sustentada principalmente por parcerias com organizações sociais sem fins lucrativos, que disputam o financiamento público com empresas privadas e os entes públicos. Tal terceirização é justificada pela burocracia estatal, uma vez que as ONGS teriam mais rapidez nos repasses de recursos, maior flexibilidade e maior liberdade na gestão dos recursos (PEREIRA; TASSIGNY; BIZARRIA, 2017; OLIVEIRA; PINHO; MALFITANO, 2019).

Este vínculo é marcado pela grande rotatividade e fragilização, que dificultam a organização e resistência política, assim como a capacitação profissional. A terceirização também pode comprometer o trabalho e a assistência ao usuário, interferindo diretamente na qualidade do serviço para o usuário final (PEREIRA; FROTA, 2017).

Com relação à idade dos terapeutas ocupacionais, entre os anos 2012 e 2019, houve uma variação entre 21 anos e 60 anos. Especificamente no ano de 2019, 17 (50%) profissionais tinham entre 21 e 30 anos, 11 (32%) tinham entre 31 e 40 anos, 3 (9%) entre 41 e 50 anos e 3 (9%) tinham entre 51 e 60 anos.

Sobre o sexo dos profissionais, é perceptível a predominância do sexo feminino entre os terapeutas ocupacionais atuando no SUAS durante os anos de 2012 até 2019. Em 2019, 31 (91,1%) dos profissionais eram do sexo feminino, enquanto três (8,8%) eram do sexo masculino.

Essa maioria de mulheres terapeutas ocupacionais no SUAS pode ter uma relação com uma maior predominância histórica das mulheres na profissão. Segundo Figueiredo et al. (2018), a criação da profissão coincidiu com o momento de entrada das mulheres no mercado de trabalho, principalmente depois das guerras mundiais. A terapia ocupacional, assim como outras profissões relacionadas ao cuidar, desde seu nascimento, são associadas à figura feminina, em razão de estereótipos de gênero que englobam a “habilidade natural” feminina para o cuidar e para realizar tarefas que demandam características como: bondade infinita, paciência, imaginação e maternalidade, que vale ressaltar, listadas por Eleonor C. Slagle como características da personalidade de uma terapeuta ocupacional ideal (BENETTON; VARELA, 2001).

Esta maior presença de mulheres não ocorreu apenas no âmbito da saúde ou da terapia ocupacional, a assistência social, historicamente, também se constitui como um espaço de atuação destas mulheres. A assistência social possui raízes na caridade e na benemerência realizadas pelas chamadas “damas de caridade”, mulheres de elevado poder aquisitivo que se dedicavam ao auxílio dos mais necessitados (CISNE, 2007). Compreendemos, contudo, que este estereótipo pode ser problematizado durante a graduação, visando criar estratégias para modificar a realidade.

Por fim, a pesquisa nos possibilitou concluir que, apesar do aumento de terapeutas ocupacionais nos equipamentos socioassistenciais do estado, ainda é necessária a contínua organização da profissão para maior inserção profissional, sobretudo na proteção social básica onde existe importante escassez de profissionais, que atuaram em apenas um equipamento ao longo dos anos pesquisados. Além disso, é fundamental demonstrar a capacidade técnico-profissional nestes espaços, além de abarcar uma formação acadêmica adequada para atuação neste contexto.

Espera-se que esta pesquisa possa contribuir para uma maior divulgação da categoria profissional, assim como maior inserção de terapeutas ocupacionais no SUAS no estado, permitindo dimensionar a necessidade de abertura de vagas em determinados equipamentos e níveis de complexidade. O mapeamento dos profissionais também pode permitir novas pesquisas que se dediquem a compreender a atuação desta categoria profissional no SUAS.

 

Texto escrito por: Lalesca Faria Zanoti e Giovanna Bardi

Relatório da pesquisa disponível na íntegra: https://drive.google.com/file/d/1CbZXNXjMYvM_J5ubP8x380vwmR6-qz4L/view


Referências:

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BENETTON, M. J.; VARELA, R. C. B. Eleanor Clarke Slagle. Revista CETO, n.6, p.32-35, 2001.

BRASIL. Senado Federal. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Centro Gráfico, 1988.

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BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Resolução nº 17, de 20 de junho de 2011. Ratificar a equipe de referência definida pela Norma Operacional Básica de Recursos Humanos do Sistema Único de Assistência Social – NOB-RH/SUAS e Reconhecer as categorias profissionais de nível superior para atender as especificidades dos serviços socioassistenciais e das funções essenciais de gestão do Sistema Único de Assistência Social – SUAS. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 21 jun. 2011.

BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Secretaria Nacional de Assistência Social. Sistema Único de Assistência Social. Tipificação nacional de serviços socioassistenciais. Brasília: MDS, 2014.

CISNE, M. A. “Feminização” da assistência social: apontamentos históricos para uma análise de gênero. In: JORNADA INTERNACIONAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS, 3., 2007, São Luís. Anais... São Luís: Universidade Federal do Maranhão, 2007. p. 1-9.

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INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Panorama do município de Vitória. Disponível em: <https://cidades.ibge.gov.br/brasil/es/vitoria/panorama>. Acesso em: 10 de maio de 2021.

OLIVEIRA, M. L.; PINHO, R. J.; MALFITANO, A. P. S.. O cenário da inserção dos terapeutas ocupacionais no Sistema Único de Assistência Social: registros oficiais sobre o nosso percurso. Cad. Bras. Ter. Ocup., São Carlos, v. 27, n. 4, p. 828-842, dec. 2019.

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