Terapia Ocupacional no campo social e o SUAS: reflexões sobre a experiência do RJ
A atenção para
demandas sociais acompanha as formulações e a gênese de institucionalização da
própria Terapia Ocupacional em muitas partes do mundo. Especificamente no
Brasil, o período de industrialização na década de 1950 e a redemocratização
política no final dos anos 1980, por exemplo, foram cruciais para compreender
processos e finalidades da Terapia Ocupacional na garantia de direitos sociais
de pessoas, grupos e populações em maior vulnerabilidade econômico-social.
Este cenário
demonstra como se deu a superação de paradigmas biomédicos e do binômio
saúde-doença como os vetores centrais dos fundamentos da Terapia Ocupacional,
para uma compreensão centrada na cidadania através do envolvimento em ocupações
da vida cotidiana. Isso evidencia que as demandas que ora se apresentam para a
área, e outras que virão, compreendem um panorama aberto, poroso e flexível
para as transformações e ressignificações do objeto profissional e de estudo,
que colocam novos desafios técnicos, éticos e políticos para a profissão.
Portanto, é importante discutir como se estabelecem os processos formativos de
terapeutas ocupacionais a respeito das questões sociais e o modo como
estudantes aprendem a responder, pelo trabalho técnico, às demandas cada vez
mais complexas do campo social.
Neste sentido, a
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), desde a abertura do curso de
graduação em Terapia Ocupacional em 2009, oferta a disciplina sobre questões e
intervenções sociais, posta sob o crivo
de ambiguidades e certa incompreensão sobre os contornos do campo e cenários de
atuação. A primeira disciplina do curso, por exemplo, recebeu o nome de
"Terapia Ocupacional no Sistema Penal e na Inclusão Social",
acreditando-se ser este um "cenário" de prática profícuo para
terapeutas ocupacionais. Mesmo não havendo cenário específico de estágio para o
campo social, uma das áreas era denominada (ainda é) de "Terapia
Ocupacional na Saúde Mental/Social". Tais enunciações oficiais deflagravam
(e ainda deflagram) uma compreensão mais do contexto das questões sociais que
atravessam a vida cotidiana das diferentes populações da ação
terapêutico-ocupacional, e menos uma preocupação das delimitações de um campo
epistêmico, político e administrativo, como os diferentes equipamentos e
processos específicos, distintos da saúde. A partir de 2018, com a
creditação da extensão no curso, houve um ajuste do nome da disciplina para
"Terapia Ocupacional Social", levando em conta como costumeiramente
ela vem sendo reconhecida e inserida nos diversos Projetos Políticos
Pedagógicos (PPP) dos cursos em Terapia Ocupacional no Brasil. No entanto,
hoje, compreende-se que a Terapia Ocupacional Social não é o campo das questões
sociais "em si" para a Terapia Ocupacional e, sim, um referencial
teórico-metodológico para a sustentação das ações e do conhecimento disciplinar
em Terapia Ocupacional nas questões sociais. Desta forma, atualmente
trabalha-se, mesmo que informalmente, até uma mudança curricular, com a
proposição de "Terapia Ocupacional no campo social".
Nestes doze anos
de implementação do curso de Terapia Ocupacional na UFRJ, muitas ações no campo
social foram desenvolvidas, além da disciplina curricularmente prevista - ações
de extensão junto a povos e comunidades tradicionais, com as juventudes urbanas
periféricas, com comunidades LGBTQIA+, projetos de pesquisa de iniciação
científica e de finalização de curso, eventos científicos com debates sobre o
campo epistêmico e das abordagens sociais, práticas supervisionadas,
disciplinas optativas (Arte-urbana, Terapia Ocupacional e Ações Territoriais)
que, juntas, foram configurando um núcleo de conhecimento e prática social que
cumprem uma dupla função: a formação de terapeutas ocupacionais para o campo
social e respostas às demandas do território onde a universidade está inserida.
Destas
experiências, a partir de 2021, iniciamos uma interlocução com um território
particular na cidade do Rio de Janeiro - o Complexo do Alemão, que reúne
diferentes favelas e que é lócus das práticas de extensão e pesquisa de uma das
autoras deste texto. Desde 2016, vínhamos com a intenção de abertura de estágio
curricular obrigatório aos estudantes graduandos em Terapia Ocupacional da
UFRJ, uma vez que o município do Rio de Janeiro não dispõe de terapeutas
ocupacionais nos equipamentos na rede de proteção socioassistencial.
A Lei 3.343/2001
que instituiu o Sistema Municipal de Assistência Social (SMAS) da cidade do Rio
de Janeiro, dispõe que somente assistentes sociais sejam os profissionais
operadores da Política de Assistência Social, garantindo, portanto, a
contratação direta, como servidor público, desta categoria, bem como a ação
técnica e gestão dos serviços de administração direta dos CRAS e CREAS. Embora
terapeutas ocupacionais sejam profissionais já previstos nos serviços socioassistenciais,
conforme rege a NOB-17/2011, tanto desenvolvendo ações de gestão como técnicos
operacionais da política, como na gestão de equipamentos, programas e
políticas, na cidade do Rio de Janeiro, terapeutas ocupacionais estão previstos
somente como categoria profissional para a implementação do sistema municipal
de assistência social dos serviços intermediados por Fundações e/ou
Organizações da Sociedade Civil. No entanto, não há no Rio de Janeiro outros
serviços e programas da Assistência Social que sejam intermediados, assim, na
prática, não contamos com terapeutas ocupacionais na cobertura da assistência
social na cidade, inviabilizando a oferta de terapeutas ocupacionais para
estágios, obrigatórios e não obrigatórios, pelos serviços públicos e intermediados
da rede socioassistencial, divergindo significativamente dos avanços e da
garantia de direitos sociais à população em risco e vulnerabilidade social,
como observado em outras localidades brasileiras. Além disso, observamos que a
lei SMAS expressa flagrante a divisão e hierarquia social do mercado de
trabalho através de uma política social. O que nos parece ser imperativo o seu
debate com a sociedade mais ampla sobre os seus prejuízos e limitações.
Frente às
demandas sociais que sujeitos e populações apresentam na vida prática e
cotidiana, estamos inaugurando neste ano de 2022, com muita alegria, o campo
social da terapia ocupacional com a oferta de estágio profissional. Acreditamos
que as parcerias com o território vão para além dos serviços socioassistenciais,
tendo a Universidade uma forte presença no território do Complexo do Alemão.
Desta forma, a oferta destas práticas se dará através de convênio firmado junto
a organização da sociedade civil Espaço Democrático de União, Convivência,
Aprendizagem e Prevenção (EDUCAP) que já possui parceria com o Centro de
Referência da Assistência Social (CRAS/Ramos). Tal parceria entre EDUCAP e CRAS
permitirá que os docentes e estudantes de Terapia Ocupacional da UFRJ possam
compreender e intervir nas dinâmicas do território, de maneira intersetorial e
no acompanhamento de casos compartilhados. Acreditamos que esta estratégia
facilitará o reconhecimento e a inserção da Terapia Ocupacional na rede
socioassistencial da cidade. Logo, enquanto Universidade e Curso de Terapia
Ocupacional, tal parceria deverá colaborar com a qualificação e a busca pela
eficiência e eficácia das ações socioassistenciais e pela formação de
estudantes em serviço. Esperamos que desta parceria, novos horizontes para a
terapia ocupacional no SUAS possam se abrir na cidade do Rio de Janeiro e que
possamos, enquanto profissionais da assistência social, nos reconhecermos e
sermos, de fato, “reconhecidos” na operacionalização da Política Nacional de
Assistência Social (PNAS).
Profa. Dra. Beatriz Akemi Takeiti
Prof. Dr.
Ricardo Lopes Correia
Docentes do
Departamento de Terapia Ocupacional e do Programa de Pós-Graduação em
Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social (EICOS)
UFRJ
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