Terapia Ocupacional no campo social e o SUAS: reflexões sobre a experiência do RJ

 

Descrição da imagem: Fundo Laranja, na lateral direita contém uma mancha de spray na cor bege. No centro há uma imagem de uma comunidade periférica do Rio de Janeiro, incluindo o título: "Terapia Ocupacional no campo social e o SUAS: reflexões sobre a experiência do Rio de Janeiro". Escrito por: Profa. Dra. Beatriz Akemi Takeiti e Prof. Dr. Ricardo Lopes Correia#pratodosverem


A atenção para demandas sociais acompanha as formulações e a gênese de institucionalização da própria Terapia Ocupacional em muitas partes do mundo. Especificamente no Brasil, o período de industrialização na década de 1950 e a redemocratização política no final dos anos 1980, por exemplo, foram cruciais para compreender processos e finalidades da Terapia Ocupacional na garantia de direitos sociais de pessoas, grupos e populações em maior vulnerabilidade econômico-social.

Este cenário demonstra como se deu a superação de paradigmas biomédicos e do binômio saúde-doença como os vetores centrais dos fundamentos da Terapia Ocupacional, para uma compreensão centrada na cidadania através do envolvimento em ocupações da vida cotidiana. Isso evidencia que as demandas que ora se apresentam para a área, e outras que virão, compreendem um panorama aberto, poroso e flexível para as transformações e ressignificações do objeto profissional e de estudo, que colocam novos desafios técnicos, éticos e políticos para a profissão. Portanto, é importante discutir como se estabelecem os processos formativos de terapeutas ocupacionais a respeito das questões sociais e o modo como estudantes aprendem a responder, pelo trabalho técnico, às demandas cada vez mais complexas do campo social.

Neste sentido, a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), desde a abertura do curso de graduação em Terapia Ocupacional em 2009, oferta a disciplina sobre questões e intervenções sociais,  posta sob o crivo de ambiguidades e certa incompreensão sobre os contornos do campo e cenários de atuação. A primeira disciplina do curso, por exemplo, recebeu o nome de "Terapia Ocupacional no Sistema Penal e na Inclusão Social", acreditando-se ser este um "cenário" de prática profícuo para terapeutas ocupacionais. Mesmo não havendo cenário específico de estágio para o campo social, uma das áreas era denominada (ainda é) de "Terapia Ocupacional na Saúde Mental/Social". Tais enunciações oficiais deflagravam (e ainda deflagram) uma compreensão mais do contexto das questões sociais que atravessam a vida cotidiana das diferentes populações da ação terapêutico-ocupacional, e menos uma preocupação das delimitações de um campo epistêmico, político e administrativo, como os diferentes equipamentos e processos específicos, distintos da saúde. A partir de 2018, com a creditação da extensão no curso, houve um ajuste do nome da disciplina para "Terapia Ocupacional Social", levando em conta como costumeiramente ela vem sendo reconhecida e inserida nos diversos Projetos Políticos Pedagógicos (PPP) dos cursos em Terapia Ocupacional no Brasil. No entanto, hoje, compreende-se que a Terapia Ocupacional Social não é o campo das questões sociais "em si" para a Terapia Ocupacional e, sim, um referencial teórico-metodológico para a sustentação das ações e do conhecimento disciplinar em Terapia Ocupacional nas questões sociais. Desta forma, atualmente trabalha-se, mesmo que informalmente, até uma mudança curricular, com a proposição de "Terapia Ocupacional no campo social".

Nestes doze anos de implementação do curso de Terapia Ocupacional na UFRJ, muitas ações no campo social foram desenvolvidas, além da disciplina curricularmente prevista - ações de extensão junto a povos e comunidades tradicionais, com as juventudes urbanas periféricas, com comunidades LGBTQIA+, projetos de pesquisa de iniciação científica e de finalização de curso, eventos científicos com debates sobre o campo epistêmico e das abordagens sociais, práticas supervisionadas, disciplinas optativas (Arte-urbana, Terapia Ocupacional e Ações Territoriais) que, juntas, foram configurando um núcleo de conhecimento e prática social que cumprem uma dupla função: a formação de terapeutas ocupacionais para o campo social e respostas às demandas do território onde a universidade está inserida.

Destas experiências, a partir de 2021, iniciamos uma interlocução com um território particular na cidade do Rio de Janeiro - o Complexo do Alemão, que reúne diferentes favelas e que é lócus das práticas de extensão e pesquisa de uma das autoras deste texto. Desde 2016, vínhamos com a intenção de abertura de estágio curricular obrigatório aos estudantes graduandos em Terapia Ocupacional da UFRJ, uma vez que o município do Rio de Janeiro não dispõe de terapeutas ocupacionais nos equipamentos na rede de proteção socioassistencial.

A Lei 3.343/2001 que instituiu o Sistema Municipal de Assistência Social (SMAS) da cidade do Rio de Janeiro, dispõe que somente assistentes sociais sejam os profissionais operadores da Política de Assistência Social, garantindo, portanto, a contratação direta, como servidor público, desta categoria, bem como a ação técnica e gestão dos serviços de administração direta dos CRAS e CREAS. Embora terapeutas ocupacionais sejam profissionais já previstos nos serviços socioassistenciais, conforme rege a NOB-17/2011, tanto desenvolvendo ações de gestão como técnicos operacionais da política, como na gestão de equipamentos, programas e políticas, na cidade do Rio de Janeiro, terapeutas ocupacionais estão previstos somente como categoria profissional para a implementação do sistema municipal de assistência social dos serviços intermediados por Fundações e/ou Organizações da Sociedade Civil. No entanto, não há no Rio de Janeiro outros serviços e programas da Assistência Social que sejam intermediados, assim, na prática, não contamos com terapeutas ocupacionais na cobertura da assistência social na cidade, inviabilizando a oferta de terapeutas ocupacionais para estágios, obrigatórios e não obrigatórios, pelos serviços públicos e intermediados da rede socioassistencial, divergindo significativamente dos avanços e da garantia de direitos sociais à população em risco e vulnerabilidade social, como observado em outras localidades brasileiras. Além disso, observamos que a lei SMAS expressa flagrante a divisão e hierarquia social do mercado de trabalho através de uma política social. O que nos parece ser imperativo o seu debate com a sociedade mais ampla sobre os seus prejuízos e limitações.

Frente às demandas sociais que sujeitos e populações apresentam na vida prática e cotidiana, estamos inaugurando neste ano de 2022, com muita alegria, o campo social da terapia ocupacional com a oferta de estágio profissional. Acreditamos que as parcerias com o território vão para além dos serviços socioassistenciais, tendo a Universidade uma forte presença no território do Complexo do Alemão. Desta forma, a oferta destas práticas se dará através de convênio firmado junto a organização da sociedade civil Espaço Democrático de União, Convivência, Aprendizagem e Prevenção (EDUCAP) que já possui parceria com o Centro de Referência da Assistência Social (CRAS/Ramos). Tal parceria entre EDUCAP e CRAS permitirá que os docentes e estudantes de Terapia Ocupacional da UFRJ possam compreender e intervir nas dinâmicas do território, de maneira intersetorial e no acompanhamento de casos compartilhados. Acreditamos que esta estratégia facilitará o reconhecimento e a inserção da Terapia Ocupacional na rede socioassistencial da cidade. Logo, enquanto Universidade e Curso de Terapia Ocupacional, tal parceria deverá colaborar com a qualificação e a busca pela eficiência e eficácia das ações socioassistenciais e pela formação de estudantes em serviço. Esperamos que desta parceria, novos horizontes para a terapia ocupacional no SUAS possam se abrir na cidade do Rio de Janeiro e que possamos, enquanto profissionais da assistência social, nos reconhecermos e sermos, de fato, “reconhecidos” na operacionalização da Política Nacional de Assistência Social (PNAS).

Texto escrito por: 

Profa. Dra. Beatriz Akemi Takeiti

Prof. Dr. Ricardo Lopes Correia

Docentes do Departamento de Terapia Ocupacional e do Programa de Pós-Graduação em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social (EICOS)

UFRJ

 

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