“Todo mundo faz tudo”, da mesma forma? - Dialogando sobre especificidades e generalizações no trabalho em equipe no SUAS.
A assistência social é um setor de política social que se configura como
espaço de trabalho de diferentes profissionais, incluindo terapeutas
ocupacionais, os quais dialogam por meio de seus conhecimentos e práticas na
composição das equipes técnicas de referência dos serviços do Sistema Único de
Assistência Social (SUAS). Essa dimensão do trabalho coletivo no SUAS ganhou maior
visibilidade após a publicação da
Resolução CNAS n.º 17/2011, que
definiu as categorias profissionais aptas a atuar na gestão e/ou execução da
política e dos serviços socioassistenciais.
Yazbek (2008) destaca que esse novo modelo
assistencial instaurado pelo SUAS impôs uma série de mudanças à política de
recursos humanos na assistência social, de modo que a inclusão de novas
categorias profissionais e a regulamentação de funções ou ocupações redefiniu a
divisão técnica do trabalho no setor.
Esse processo colocou em evidência várias
problemáticas e discussões em torno do trabalho profissional na assistência
social, tais como: o seu caráter coletivo e interdisciplinar; as atribuições e
competências das categorias profissionais; as especificidades dessas categorias
na composição do trabalho no SUAS; a preocupação com o possível retorno
de práticas retrógradas, calcadas em uma leitura individualizante, superficial
e fragmentadora das demandas sociais, supostamente pelo fato de algumas das
categorias reconhecidas não possuírem seus processos de profissionalização
vinculados ao trabalho na assistência social, dentre outras.
Dessas variadas questões que envolvem o trabalho no SUAS, uma das que
mais inquietam profissionais que atuam nos serviços diz respeito às atribuições
e competências profissionais, pois é nela que se situa a discussão sobre as
especificidades e generalidades do trabalho no âmbito das equipes técnicas.
Defendemos a ideia de que
a discussão sobre o trabalho em equipe no SUAS, fortemente influenciada pelas
teorias da interdisciplinaridade, requer, antes de tudo, considerar as
especificidades do trabalho de cada categoria profissional. Somente após reconhecer
essas especificidades e sua relevância no contexto do trabalho em equipe, deveríamos
designar as relações e os lugares fronteiriços de atuação. Dito de outro modo,
trata-se de buscar identificar e valorizar as contribuições de cada
profissionalidade no trabalho no SUAS, reconhecendo o caráter coletivo deste,
mas sem diluir as particularidades de cada profissão no processo de análise e
intervenção social.
Contudo, observamos que os documentos oficiais da PNAS, que trazem
diretrizes para o trabalho profissional no SUAS, são pouco elucidativos no
sentido de delimitar os papéis de cada membro das equipes técnicas, sendo as
atribuições destas equipes apresentadas de modo indiferenciado e os
profissionais tratados sem qualquer distinção sob a denominação técnico de
referência (BRASIL, 2006; 2009; 2011). Isto, somado a outras questões, tem
levado ao fato de que no trabalho em equipe no SUAS haja uma tendência de prevalecer
ações de caráter indiferenciado entre as profissões.
Temos, então, que as diretrizes presentes nos documentos oficiais se
aplicam ao conjunto de profissionais do SUAS e que a busca das especificidades
perpassa mais pelos modos de executar o trabalho, envolvendo suas diferentes
dimensões (referenciais teóricos; recursos e metodologias utilizadas; ênfases
dadas pelos profissionais na condução das ações; demandas que no cotidiano da
equipe, esta reconhece como tendo mais relação com determinadas áreas
profissionais, etc.), do que pela delimitação de atos profissionais privativos.
As análises da literatura
e do trabalho de profissionais do Serviço Social, da Psicologia e da Terapia
Ocupacional que atuam em CRAS e CREAS revelam que aquilo que se intenta definir
como específico na divisão técnica do trabalho no SUAS relaciona-se com questões
vinculadas à própria origem e ao que podemos entender como o núcleo dessas
profissões. A Psicologia, por exemplo, busca sua especificidade dando ênfase às
questões psíquicas e comportamentais que decorrem das situações de
vulnerabilidade e risco sociais, considerando a relação entre as desigualdades
sociais e os processos de subjetivação. No Serviço Social prevalece a ideia do
trabalho voltado para as questões materiais da desigualdade social e para a
viabilização do acesso aos direitos; entretanto, colocada de forma bastante
ampla, essa especificidade atribuída ao Serviço Social tende a ser confundida
com os objetivos da própria assistência social como setor de política social,
facilitando a confusão entre a atuação do assistente social com a própria política
de assistência social (BEZERRA, 2023).
Em relação à Terapia
Ocupacional, observamos que ela tem delimitado a sua especificidade discutindo
mais a dimensão técnico-operativa, ou seja, explicitando não só os objetivos da
ação profissional, mas a partir de que recursos e metodologias terapeutas
ocupacionais buscam atingir esses objetivos e garantir a proteção social no
SUAS. Os documentos elaborados pela categoria que trazem orientações para o
trabalho na assistência social (ABRATO-PROJETO METUIA, 2011; COFFITO, 2010) nos
fornecem elementos para discutir como tem sido pensado o trabalho de terapeutas
ocupacionais no SUAS, ajudando-nos a discutir a nossa especificidade na
política de assistência social.
Os documentos e a literatura da profissão evidenciam que uma
característica importante do trabalho de terapeutas ocupacionais na assistência
social é o uso das atividades como recurso mediador dos processos
interventivos, característica central na profissão independente da área de
atuação. Assim, terapeutas ocupacionais lançam mão das atividades que compõem a
vida cotidiana individual e social como forma de instrumentalizar a emancipação
de pessoas, famílias, grupos e comunidades que vivenciam processos de
dissolução de vínculos sociais ou estão impedidos da participação social em
igualdade de direitos (ALMEIDA et al., 2011). Junto ao uso da atividade
mediano os processos interventivos no SUAS, dois outros aspectos se destacam
como traços peculiares ao trabalho de terapeutas ocupacionais na assistência
social: as ações voltadas para a organização do cotidiano dos sujeitos e os
acompanhamentos territoriais (OLIVEIRA; MALFITANO, 2021).
Se esses elementos vão
delineando especificidades, muitas são as generalidades presentes no trabalho
em equipe no SUAS. Um traço comum entre as três profissões é o compartilhamento
da noção de que a formação para o trabalho no SUAS exige o conhecimento não só
das legislações, mas também a capacidade do profissional de realizar uma
leitura crítica da realidade, na perspectiva de totalidade, com vistas a situar
o usuário nas relações sociais que determinam as suas condições de existência,
não responsabilizando-o pela sua situação de vulnerabilidade social.
Admitindo a complexidade
do trabalho em equipe, Rizzotti (2014) aborda caminhos para uma possível
integração e convívio com mais consciência e preparo entre os trabalhadores do
SUAS. Destaca a necessidade de convergência conceitual entre os profissionais
acerca de temas fundamentais ao trabalho no Sistema, tais como a
vulnerabilidade e a pobreza. A autora reconhece que a multidimensionalidade das
expressões da questão social é uma importante justificativa para o trabalho em
equipe no SUAS, pois do mesmo modo que a vulnerabilidade e o risco social são
complexos e multidimensionais, a proteção social afiançada pela PNAS também o
é, devendo-se reconhecer a necessidade de complementação das diferentes áreas
de formação para que a proteção social se concretize.
Importante destacar que apesar
da literatura e dos documentos específicos das profissões apresentarem
diretrizes e orientações para o trabalho profissional no SUAS, este não é um
desdobramento automático de referenciais teóricos-metodológicos. Sobre o
trabalho incidem determinações mais amplas, as quais denominamos de vetores,
que muitas vezes têm dificultado as possibilidades de definição das
especificidades no cotidiano de trabalho no SUAS, sendo eles: as definições
institucionais e características da própria PNAS; a intensificação da
precarização do trabalho e dos serviços sociais públicos na atual conjuntura; e
as formas de organização do trabalho em equipe que derivam dos dois vetores
anteriores (BEZERRA, 2023).
Quanto ao primeiro vetor, ressaltamos
dois aspectos: a amplitude das demandas incorporadas pela PNAS como de sua
responsabilidade e o caráter inespecífico delas; e a forma como os documentos
institucionais nomeiam os cargos técnicos sem fazer distinção. Assim, temos que
as demandas que chegam aos serviços do SUAS (pobreza, violência, fragilidade de
vínculos, ato infracional etc.) se apresentam de modo indiferenciado para os
profissionais das equipes, não havendo uma correspondência direta entre essas
demandas e as profissionalidades de cada um. Isto tem relação com a multidimensionalidade
das situações com as quais a assistência social lida, que se soma ao fato dos
documentos da PNAS tratarem todos como técnico de referência, sem distinção de
papeis, o que pode dificultar a definição das especificidades no trabalho no
SUAS no cotidiano das equipes (BEZERRA, 2023).
O segundo vetor tem relação com o cenário de crise estrutural do
capitalismo, que impôs o receituário neoliberal para a gestão do Estado e das
políticas sociais, interferindo diretamente no trabalho profissional no âmbito
dos serviços sociais e provocando mudanças no mundo do trabalho e nas próprias
profissões. Esse vetor se expressa no cotidiano de trabalho pelas formas
precárias de contratação dos trabalhadores do SUAS, na falta de condições de
trabalho decorrente precarização dos serviços, incidindo na atuação das equipes
técnicas e nas possibilidades de elas diferenciarem as atribuições
profissionais na rotina de trabalho. Nesse contexto, o “todo mundo faz tudo” passa a
responder funcionalmente às necessidades de serviços precarizados e com equipes
reduzidas, uma vez que essa lógica de trabalho facilita e acelera às respostas
que precisam ser dadas às demandas institucionais (preenchimento de
formulários, relatórios e outras burocracias, metas de acompanhamento etc.),
que por vezes acabam se sobrepondo às demandas e aos objetivos profissionais
(BEZERRA, 2023).
Diante
disso, expressa-se o terceiro vetor, que são as formas de organização do
trabalho em equipe no SUAS, pois as equipes tendem a estabelecer rotinas e organizarem o
trabalho com vistas a contornar as dificuldades advindas dos processos de
precarização e para responder as demandas institucionais. Sob o argumento da
interdisciplinaridade e da denominação genérica de técnico de referência, os
profissionais acabam realizando uma divisão técnica do trabalho apenas
operacional para o encaminhamento das demandas, não estando essa divisão
relacionada às profissionalidades. Exemplo disso é quando a equipe divide as
famílias e usuários acompanhados por cada profissional somente pelo critério do
território ou para que ninguém fique sobrecarregado (BEZERRA, 2023).
Nesse cenário, precisamos tomar cuidado para que, sob a justificativa da
interdisciplinaridade prevista no SUAS, o trabalho em equipe não se torne um
objeto de fetiche, ou seja, quando se faz uma essencialização das suas
características positivas e deposita-se nele um poder maior do que de fato
possui. Essa visão fetichizada sobre a equipe multiprofissional é revelada
quando os documentos da PNAS atribuem responsabilidade, quase exclusiva, aos
profissionais pela qualidade dos serviços prestados, ou quando os próprios
profissionais depositam no trabalho em equipe a solução para inúmeras questões
vivenciadas, inclusive para dizer que não existe especificidades profissionais no
trabalho no SUAS, que “todo mundo faz tudo”, ou para contornar expressões da
precarização do trabalho (BEZERRA, 2023).
Embora seja preciso discutirmos as
especificidades das profissões no trabalho no SUAS, essa discussão também não
deve enveredar pelo campo do corporativismo. Segundo Silveira (2014), deveríamos
compreender o processo político e institucional de reconhecimento das
profissões pela Resolução nº. CNAS 17/2011 como algo positivo, uma valorização
do pluralismo e da diversidade de saberes e práticas, da atuação qualificada de
profissionais que conformam coletivos de trabalho e da sua incidência nas
instituições formadoras.
São muitos os desafios que o trabalho em equipe coloca para os
profissionais, inclusive o de construir uma identidade de trabalhador da
política de assistência social diante de categorias com formações profissionais
tão diversas. Braga (2014) afirma que essa identidade poderia ser construída
pela definição de um projeto ético-político compartilhado, através do qual
seriam definidos compromissos, princípios, diretrizes e valores para orientar
as intervenções profissionais. A identidade de trabalhador do SUAS
extrapolaria, portanto, uma determinada profissionalidade.
Apesar das determinações
estruturais imporem limites ao trabalho em equipe, Rizzotti (2014) assevera que
a condição de profissional dos membros das equipes de referência, caracterizada
pela dimensão intelectual do trabalho, resguardaria um campo de liberdade e
autonomia. A mescla entre conhecimentos técnicos e compromissos éticos e
políticos conformaria, no cotidiano de trabalho, um espaço possível de
articulação e definição de objetivos comuns que seriam capazes de integrar os
profissionais das equipes de referência do SUAS.
Reconhecemos que o
trabalho em equipe representa um avanço para a profissionalização da política
de assistência social e que, de fato, pode qualificar e enriquecer o trabalho
no SUAS na perspectiva da ampliação e diversificação das ações
socioassistenciais e da concepção da assistência social pretendida e construída
nas três últimas décadas no Brasil. No entanto, nesse espaço de trabalho
coletivo e complexo que configura a assistência social, é preciso estarmos,
constantemente, atentos e discutindo sobre quais atribuições precisariam ser de
domínio coletivo dos trabalhadores, de modo que haja prontidão para atender os
usuários em suas distintas demandas como, por exemplo, o acolhimento e a
abordagem social, e quais seriam próprias a determinadas categorias. Como bem
coloca Torres (2014, p. 246), “reconhecer o trabalho em equipe exige observar
qual é o limite que estabelece corresponsabilidade com complementariedade e não
com indistinção, sobreposição ou excesso de responsabilização”.
Texto escrito por: Waldez Cavalcante Bezerra, Terapeuta Ocupacional, Mestre e Doutor em Serviço Social pelo Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Alagoas, Especialista em Educação em Direitos Humanos e Diversidade pela UFAL e Especialista Profissional em Terapia Ocupacional e Contextos Sociais pelo COFFITO.
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Adorei , Waldez!!
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