Percursos iniciais de uma pesquisa sobre violência contra mulheres na interface com a terapia ocupacional
Meu
nome é Júlia Augusta Soares, sou estudante de terapia ocupacional na
Universidade Federal do Triângulo Mineiro e junto com a Professora Marina
Leandrini de Oliveira, estou realizando o Trabalho de Conclusão de Curso cujo
título é “A violência contra mulheres na pandemia de Covid-19: interfaces
com a terapia ocupacional”.
O
estudo tem como proposição compreender as perspectivas de mulheres em relação
ao aumento da violência no contexto pandêmico e identificar as possibilidades
de atuação de terapeutas ocupacionais junto a mulheres em situação de
violência, no âmbito do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Aqui,
referimo-nos mulheres a todas as pessoas que se auto
identificam/reconhecem desta forma.
Adotamos
uma perspectiva sociopolítica e cultural para fazer a leitura dos processos
relacionados à temática e partimos do entendimento de que a sociedade é marcada
por desigualdades de gênero e violências que afirmam historicamente relações de
poder e dominação sobre as mulheres.
Especificamente
durante o período de pandemia de Covid-19, acompanhamos um aumento dos casos de
violência. Segundo dados do Ligue 180, no ano de 2020, ocorreu um aumento de 9%
de ligações realizadas para o canal de denúncias de violência contra a mulher
(BRASIL, 2020a). Foi identificado também o aumento de atendimentos de violência
doméstica pela Polícia Militar (PM) pelas ligações ao 190. Apenas no estado de
São Paulo este número subiu de 6.775 para 9.817 de março de 2019 para março de
2020.
Já dados
do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (Samira BUENO et al., 2021, p.7), que considerou
os meses de abril, maio e junho de 2020, indicou uma “queda nos registros
policiais de lesão corporal dolosa, ameaça, estupro e estupro de vulnerável
contra mulheres”, "entretanto a violência letal – feminicídio e homicídio
de mulheres - apresentou crescimento no período, em um sinal de agravamento dos
conflitos". Estas informações expressam que embora a violência letal
tenha aumentado, as mulheres não conseguiram denunciar como nos períodos anteriores,
provavelmente devido ao "maior convívio junto ao agressor e da consequente
ampliação da manipulação física e psicológica sobre a vítima e das dificuldades
de deslocamento e acesso a instituições e redes de proteção" (BUENO et
al., 2021, p.8).
Outra
pesquisa realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança junto ao Instituto
Datafolha, revelou que as mudanças na rotina durante a pandemia foram sentidas
de forma desigual por homens e mulheres e que "uma em cada quatro mulheres
brasileiras (24,4%) acima de 16 anos afirma ter sofrido algum tipo de violência
ou agressão nos últimos 12 meses, durante a pandemia de Covid-19. Isso
significa dizer que cerca de 17 milhões de mulheres sofreram violência física,
psicológica ou sexual no último ano" (BUENO et at., 2021, p. 10).
Enfatiza-se
que a violência não acomete a todas as mulheres de forma homogênea. Os dados do
Atlas da Violência, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA, 2021, p.
40) mostram que o número de homicídios de mulheres negras, de 2009 a 2019,
aumentou em 2%, alterando-se de “2.419 vítimas em 2009, para 2.468 em
2019". Enquanto o número de mulheres não negras assassinadas caiu 26,9% no
mesmo período, passando de 1.636 mulheres mortas em 2009 para 1.196 em
2019". Neste sentido, salienta-se que mulheres,
especialmente negras, pobres, periféricas vivem consequências mais negativas
dos reflexos da pandemia do que outros grupos populacionais (Janaína Dutra
Silvestre MENDES, 2020).
Diante
deste alarmante cenário, resgatamos brevemente que os processos de resistência
à diferentes modos de opressões/violências e o desenvolvimento de iniciativas
para proteção social das mulheres no país, tiveram suas histórias articuladas a
elementos como: lutas de movimentos sociais e feministas (no âmbito de suas
pluralidades e disputas), aos pactos e convenções internacionais em que o
Brasil foi signatário (como por exemplo, a Convenção sobre a Eliminação de
todas as Formas de Discriminação contra a mulher, aprovada pela Organizações
das Nações Unidas em 1979, ratificada no país em 1984 e integrada em 1994) e
dos movimentos em prol da constituinte e das políticas públicas sociais (Cássia
Reis DONATO, 2016).
A
implementação de políticas voltadas à proteção social de mulheres remonta ao
final da década de 1960 e se caracteriza como pontuais decretos relacionados ao
trabalho e à inserção do salário-maternidade atribuído à Previdência Social. As
provisões se ampliaram com a Constituição Federal de 1988, e na década de 1990,
foram promulgados decretos especificamente relacionados à violência,
destacando-se a "Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar
a violência contra mulher", em Belém do Pará, no ano de 1994 (BRASIL, 2020b).
Nos
anos 2000, salienta-se o decreto que dispõe sobre o crime de assédio sexual
(2001), a promulgação da Convenção sobre a eliminação de todas as formas de
discriminação contra a mulher (2002), a criação da Secretaria de Políticas para
as Mulheres (2003), o estabelecimento da notificação compulsória do caso de
violência contra a mulher (2003), a criação da tipologia "Violência
Doméstica" no Código Penal e a disponibilização do número telefônico
destinado a atender denúncias de violência contra a mulher - Ligue 180 (2005)
(BRASIL, 2020b).
Dentre
esses, um avanço significativo no meio legislativo foi dado pela Lei. 11.340 de
2006, intitulada Lei Maria da Penha, que criou mecanismos que buscam coibir a
violência doméstica contra mulheres, incluindo ações de prevenção, previsão de
direitos, proteção jurídica e redimensionamento de uma rede de atenção às
mulheres em situação de violência (que inicialmente ficavam voltadas
especificamente às delegacias e Casas Abrigo) (BRASIL, 2006; BRASIL,
2011).
No
ínterim da estruturação destas proteções, destacam-se a implementação do SUAS e
das unidades e serviços socioassistenciais tipificados para o acompanhamento
permanente em atuações de prevenção e enfrentamento à violência contra mulheres.
Algumas das unidades do SUAS integram as redes de atendimento, conceituadas
como um "conjunto de ações e serviços de diferentes setores, que visam
à ampliação e à melhoria da qualidade do atendimento, à identificação e ao
encaminhamento adequados das mulheres em situação de violência e à
integralidade e à humanização do atendimento" (BRASIL, 2011, p.13).
Essas
redes de atenção às mulheres são compostas de serviços especializados, ou não,
para este público, sendo previsto a todos a instrumentalização para atender
diretamente às mulheres em situação de violência e/ou risco. A atuação
deve ser articulada para garantir um acompanhamento integral que não revitimize
as mulheres, sendo os setores mais amplamente envolvidos:
- A assistência social: por meio dos Centros de Referência de
Assistência Social - CRAS, dos Centros de Referência Especializados de
Assistência Social - CREAS e das unidades de acolhimento para Mulheres;
- A
justiça: pelas promotorias e defensorias da mulher, juizado de
violência doméstica e familiar e varas cíveis e criminais;
- A
saúde: pelos serviços de referência para mulheres vítimas de violência
sexual, SAMU, unidades básicas de saúde, hospitais e rede de saúde mental;
- A
Segurança Pública: nas Delegacias Especializadas de Atendimento às
Mulheres (DEAM) e delegacias comuns, patrulhas Maria da Penha, polícia federal,
corpo de bombeiros e IML (BRASIL, 2021a).
Além
destes serviços, há ações específicas de políticas para as mulheres como: Ligue
180, Ouvidorias da Mulher e os Centro de Referências de Atendimento à Mulher.
Evidencia-se o Ligue 180 que se constitui um serviço da
Secretaria de Políticas para as Mulheres e funciona diariamente, durante 24
horas, sendo um número válido para todo território nacional. Esse canal realiza
o recolhimento de denúncias, auxílios e orientações para mulheres que se
encontram em situação de violência, além do encaminhamento para redes de
serviços mais próximos (DONATO, 2016; BRASIL, 2021a).
Especificamente
na assistência social, o CRAS, como uma unidade da proteção social
básica, executa um serviço de acompanhamento não especializado buscando
minimizar as possibilidades de violência, favorecendo o fortalecimento da
proteção das famílias e consequentemente, das mulheres (BRASIL, 2020c).
O CREAS, unidade da proteção social especial de média complexidade, que embora não atenda exclusivamente mulheres, é
considerada uma unidade especializada no acompanhamento de mulheres
vítimas de violência ou em situação de risco iminente (BRASIL, 2019).
As
unidades de acolhimento para mulheres integram a proteção social especial de alta complexidade, e podem ofertar o
serviço em unidades tipificadas como Casas Abrigo ou Casas de Passagem
(acolhimento provisório). As Casas Abrigos
propõem disponibilizar uma moradia segura em um prazo de 90 a 180 dias
de forma sigilosa, visando um atendimento integral à mulher que sofre quaisquer
ameaças por parte de seus agressores. As Casas de Passagem, diferentemente das
Casas Abrigos, acolhem a mulher em um prazo médio de 15 dias, não são sigilosas
ou voltadas para mulheres que não sofrem risco de morte, sendo destinada a
mulheres que precisam de assistência por terem vivido situações de quaisquer
tipos de violência (DONATO, 2016).
Os dados sobre a pandemia apresentados inicialmente, evidenciam que mesmo com uma estrutura de redes de serviço voltadas à mulher, é necessário o incremento de estratégias que ampliem o enfrentamento da violência. Em 2020, no contexto pandêmico, por exemplo, emergiu uma campanha, de âmbito nacional, que possibilitou o pedido de ajuda de mulheres em situação de violência em drogarias/farmácias. As orientações para o pedido de ajuda, indicam que as mulheres desenhem um "X" na mão, de preferência da cor vermelha, como um sinal de uma denúncia silenciosa aos profissionais do local (BRASIL, 2021b). No dia 28 de julho de 2021 a "Campanha do Sinal Vermelho", como foi denominada, foi sancionada com a Lei 14.188 (BRASIL, 2021c).
Tratam-se de estratégias importantes, mas que deveriam se integrar a um conjunto de outras ações e serviços que atualmente estão sendo realizados de maneira incipientes pelos desinvestimentos na proteção social no país (Livia Celegati PAN et al., 2021).
Vale mencionar que nos colocamos na defesa das políticas públicas de proteção social e que somada às ações, serviços e redes de enfrentamento à violência, devem estar os movimentos e políticas que reivindicam o fim das culturas machistas, patriarcais, racistas, sexistas, misóginas e tantas outras que nos colocam em estruturas desiguais, perpetuando processos de violência em nossa sociedade.
Destacamos a importância de ampliar os espaços de debate que permitam problematizar a violência e fortalecer o seu enfrentamento. Diante da inserção e práticas de terapeutas ocupacionais nas diferentes unidades que compõem o SUAS, afirmamos que enquanto categoria profissional podemos contribuir com o acompanhamento de mulheres que sofreram ou sofrem algum tipo de violência.
Estamos nas etapas inicias de nossa pesquisa, dedicando-nos a levantamentos, leituras e estudos sobre a temática, e pretendemos desvelar algumas das características do trabalho desses profissionais, partindo das práticas concretas realizadas especialmente no CREAS. Esperamos, ainda no mês de setembro, contatar terapeutas ocupacionais e mulheres que queiram compor esse diálogo conosco.
Referências
BRASIL. Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Coronavírus: sobe o número de ligações para canal de denúncia de violência doméstica na quarentena. 2020a. Dados disponíveis em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/todas-as-noticias/2020-2/marco/coronavirus-sobe-o-numero-de-ligacoes-para-canal-de-denuncia-de-violencia-domestica-na-quarentena. Acesso em: 9 de setembro de 2021.
BRASIL. Legislação Federal e as Mulheres. 2020b. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/politicas-para-mulheres/LegislaesFederaiseasMulheres.pdf. Acesso em: 9 de setembro de 2021.
BRASIL. Lei n. 11.340. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. 2006. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm. Acesso em: 9 de setembro de 2021.
BRASIL. 2011. Rede de enfrentamento a violência contra Mulheres. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/institucional/omv/entenda-a-violencia/pdfs/rede-de-enfrentamento-a-violencia-contra-as-mulheres. Acesso em: 9 de setembro de 2021.
BRASIL. Violência doméstica e familiar contra mulher. 2021a. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/denuncie-violencia-contra-a-mulher/violencia-contra-a-mulher. Acesso em: 9 de setembro de 2021.
BRASIL. Governo do Brasil. Acessar CRAS - Centro de Referência da Assistência Social. 2020c. Disponível em: <https://www.gov.br/pt-br/servicos/acessar-o-cras-centro-de-referencia-da-assistencia-socia> Acesso em: 12 de maio de 2021.
Texto escrito por Júlia
Augusta Soares, discente do Curso de Graduação em Terapia Ocupacional da
Universidade Federal do Triângulo Mineiro e Marina Leandrini de Oliveira,
docente na mesma universidade.
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