A Terapia Ocupacional e as ações junto ao Sistema Único de Assistência Social da região da Grande Vitória

Em 2011, a Resolução nº 17 do Conselho Nacional de Assistência
Social (CNAS) reconheceu formalmente, dentre outras categorias profissionais, a
terapia ocupacional como parte das equipes de referência e/ou da gestão dos
equipamentos do SUAS (BRASIL, 2011). Esse passo, além de ter sido importante
para o reconhecimento da categoria neste sistema, refletiu a sua participação
organizada no processo de discussão que buscou definir quem deveriam ser os
trabalhadores do SUAS (Marta Carvalho de ALMEIDA et al, 2012).
A partir do ano de 2011, houve um aumento progressivo de
terapeutas ocupacionais no SUAS no cenário nacional (Marina Leandrini de
OLIVEIRA; Roberta Justel do PINHO; Ana Paula Serrata MALFITANO, 2019). Com
relação ao estado do Espírito Santo, segundo os dados disponíveis na plataforma
pública Censo SUAS, no ano de 2019, puderem ser contabilizadas(os) 35
terapeutas ocupacionais no SUAS, estando 15 delas(es) nos Centros Dia, 12 nos
Centros de Referência Especializados da Assistência Social (CREAS), sete nas
Unidades de Acolhimento (Abrigos e Residências Inclusivas) e uma no Centro Pop.
Destas(es) 35 terapeutas ocupacionais, 13 podem ser encontradas(os) no
município de Vitória, ES, sendo distribuídas(os) da seguinte maneira: sete nos
CREAS, quatro nas Unidades de Acolhimento e dois nos Centros Dia. A maioria delas(es),
portanto, podem ser encontradas(os) nos CREAS e não há profissional
localizada(o) nos Centros de Referência da Assistência Social (CRAS) do
município, ressaltando a necessidade de ampliarmos a inserção profissional para
estes equipamentos.
Levando em consideração a inexistência de terapeutas
ocupacionais nos CRAS, em agosto do ano de 2016, foi criado no Departamento de
Terapia Ocupacional da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) um projeto
de extensão com o objetivo de realizar ações nos equipamentos
da assistência social da Grande Vitória, possibilitando às(aos) estudantes de
terapia ocupacional a formação no âmbito do SUAS. Além disso, objetiva
apresentar as metodologias de trabalho da terapia ocupacional social e divulgar a categoria nas unidades socioassistenciais.
Nossa parceria se deu com o CRAS Claudionor
Lopes Pereira,
equipamento pertencente à proteção básica do SUAS no município de Vitória,
Espírito Santo, na região de Maruípe, próximo ao campus da universidade onde se
localiza o curso de Terapia Ocupacional. Após a realização da parceria, foram
realizados diversos debates sobre as ações que poderiam ser propostas pelo
projeto.
O CRAS da região de Maruípe é um entre os doze existentes no
município, abrangendo os seguintes bairros: Santa Cecília, São Cristóvão,
Santos Dumont, Tabuazeiro, Bonfim e Maruípe. Registrava-se, em setembro/2021,
um total de 7.610 famílias ativas cadastradas no Sistema de Gerenciamento da
Atenção à Família (SIGAF), o que demonstra uma grande demanda para acesso aos
serviços socioassistenciais.
Além da oferta do Serviço de Atendimento Integral à Família
(PAIF), o CRAS também oferta o Serviço de Convivência para Jovens de 15 a 17
anos. Esse serviço é ofertado de forma complementar ao trabalho social com
famílias, pautado na defesa e afirmação de direitos e no desenvolvimento de
capacidades e potencialidades dos usuários, com vistas ao alcance de
alternativas para o enfrentamento das expressões da questão social.
Desde a criação do projeto, esse campo contou com a
coordenação de dois docentes, supervisão de uma terapeuta ocupacional da
universidade e orientação de duas docentes, tendo recebido diversas estudantes
extensionistas e estagiárias do curso de Terapia Ocupacional. Todas as ações
aconteceram (e acontecem) mediante reuniões de planejamentos e também avaliação
do encontro anterior. No caso das estagiárias, uma vez a cada quinze dias,
havia uma orientação com a(o) professora/professor do curso responsável pelo
estágio.
As ações realizadas pelo projeto
No início da parceria entre o CRAS e a UFES, a coordenação
do CRAS nos colocou que no território havia uma grande quantidade de idosas(os)
em vulnerabilidade social, com perfil para acessar o Benefício de Prestação
Continuada (BPC). A partir desta informação, propusemos intervir junto a
estas(es) idosas(os) e seus familiares por meio de um grupo.
O “Grupo do BPC” passou a ocorrer com periodicidade
quinzenal, com a presença de uma profissional da equipe do CRAS, uma terapeuta
ocupacional da UFES, estagiárias e extensionistas, sendo parte do PAIF
desenvolvido pela unidade socioassistencial.
As participantes eram idosas, em sua maioria mulheres, pertencentes ao
território, beneficiárias ou solicitantes do BPC. Com o passar do tempo, o
grupo passou a ter também como público alvo as pessoas com deficiência com
perfil para requerer o benefício em questão.
Nos encontros realizados surgiram diversas demandas: relatos
de situações de conflitos e/ou negligência; falta de conhecimento e informação
a respeito dos serviços formais e informais do território
e de seus direitos e formas de
acesso; e questões relacionadas ao lazer. Com a identificação das demandas do
grupo, individuais ou coletivas, foi possível também identificar as
potencialidades e escolha das temáticas de preferência das participantes.
Por meio de diversas metodologias, como rodas de conversa,
atividades e dinâmicas expressivas corporais e lúdicas, construção de mapa
territorial e atividades que extrapolaram os muros da instituição foi possível
promover espaço para o reconhecimento e exercício da convivência, da autonomia,
da cidadania, do respeito, da valorização de história de vida e memória social.
Durante este processo, as participantes do grupo relataram
se sentirem pertencentes ao serviço, com discursos sobre o reconhecimento de
seus direitos e deveres e com o compromisso de passarem as informações para
outros membros da comunidade.
Legenda: Foto de um passeio realizado com idosas(os) do Grupo do BPC do CRAS da região de Maruípe, em Vitória, ES
Outra demanda colocada pela equipe do CRAS, ainda
relacionada à população idosa, consistiu na sobrecarga e na fragilização da
rede de suporte de cuidadoras(es) de pessoas idosas naquele território. A
partir desta questão, o projeto propôs as oficinas “Cuidando de quem cuida”,
com periodicidade mensal para facilitar a adesão das(os) participantes.
O objetivo desta ação era oportunizar um espaço de reflexão,
autoconhecimento, convivência, trocas e orientações para as(os) cuidadoras(es),
com vistas a diminuir a sobrecarga vivenciada e prevenir situações de violação
de direitos dos idosos cuidados por elas(es).
Com o desenvolvimento das oficinas, as participantes, em sua
maioria mulheres, trouxeram diversos relatos sobre como estavam conseguindo
exercer o cuidado com mais leveza, articulando com outras pessoas de suas redes
de relações a divisão de tarefas que envolvessem o cotidiano dos idosos
cuidados. Passaram a traçar projetos de vida para além do papel social de
cuidadoras e vislumbrar outras possibilidades de vida.
Além disso, a partir de 2018, houve a aproximação da terapia
ocupacional com as ações do Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos
para adolescentes de 15 a 17 anos, mais conhecido como ProJovem. As ações
específicas junto ao ProJovem Adolescente aconteciam de forma concomitante às
demais propostas da terapia ocupacional vinculadas ao CRAS, como a realização
de acompanhamentos sistemáticos tanto individuais quanto familiares, visitas
domiciliares e acompanhamento e mapeamento territorial.
O serviço era
executado por uma educadora social que planejava as atividades e coordenava os
grupos. Além desta educadora social, as ações começaram a serem planejadas e
executadas também em conjunto com a terapeuta ocupacional e as estagiárias de
terapia ocupacional.
Parte dos objetivos deste serviço no CRAS da região de
Maruípe era prevenir a violação dos direitos
das(os) adolescentes, trabalhar o fortalecimento da rede de suporte social e
territorial e propiciar a constituição e/ou fortalecimento de vínculos entre
as(os) adolescentes acompanhadas(os), seus familiares e o serviço. Trabalhar
tais aspectos se faz muito importante porque, em geral, as(os) participantes do
ProJovem são adolescentes que vivenciam situações complexas de pobreza, de
violências e questões étnico-raciais, além de outros marcadores sociais da
diferença.
Durante as ações, foram abordados diferentes temas que
diziam sobre as vivências das(os) próprias(os) adolescentes participantes do
grupo, como a gravidez de uma adolescente, fato que iniciou a discussão sobre
projetos de vida e maternidade. Além disso, temas como orientação sexual e a
falta de aceitação das famílias, diversidade religiosa, violências vivenciadas
cotidianamente nos territórios e a relação com a polícia foram abordados ao
longo do processo.
As metodologias utilizadas nos encontros variavam entre
rodas de conversas, confecção de cartazes, debates a partir de músicas, filmes
e charges, atividades lúdicas e passeios, onde eram explorados tanto espaços do
próprio território, como parques e praças, e também locais que não faziam parte
dos itinerários cotidianos dessas(es) adolescentes, como exposições em museus,
passeios em parques aquáticos, praias, dentre outros.
Esta diversidade de ações contribuiu para a ampliação da perspectiva
de que o ProJovem almejaria “apenas” à inserção das(os) adolescentes no mercado
de trabalho, como ainda pensam alguns profissionais. Este serviço tem uma
efetiva contribuição para o acompanhamento das realidades e dos contextos
vivenciados pelas(os) adolescentes, contribuindo para o acesso aos direitos
sociais e o exercício da cidadania.
Por fim, as ações realizadas pela equipe de terapia
ocupacional no PAIF e ProJovem ampliaram-se para o território a partir da
necessidade verificada de uma atenção mais integrada e articulada em rede para
determinadas famílias em situação de pobreza. Com isso, foram realizadas junto
à equipe, visitas domiciliares com o intuito de conhecer as realidades e
contextos familiares e acessar as principais demandas da população, além de
aproximar a rede de proteção, articular e integrar setorialmente outros
serviços e equipamentos e à comunidade.
As visitas domiciliares aconteciam semanalmente ou
quinzenalmente, a depender da necessidade dos casos e de cada contexto e
dinâmica familiar. Os acompanhamentos foram realizados por psicólogas e/ou
assistentes sociais, pela terapeuta ocupacional da UFES e estagiária e
aconteceram em todos os territórios referenciados ao CRAS.
A metodologia utilizada pela equipe de terapia ocupacional
foi o Acompanhamento Singular Territorial e Comunitário, com o levantamento de
informações necessárias do contexto singular e social da comunidade e da
família para a discussão e encaminhamento dos casos junto a equipe da
instituição.
Destacou-se a importância da dinamização das redes de
atenção dos indivíduos, pois foram identificadas dificuldades de acesso aos
direitos básicos de educação, saúde, transporte, moradia, alimentação e lazer,
havendo, assim, notadamente, a necessidade de um trabalho junto a esses diferentes
setores.
As visitas realizadas possibilitaram contribuir para a
qualidade de vida, a independência e a autonomia, de forma a ressignificar as
relações sociais e familiares no território, além de fortalecer e ampliar o
repertório ocupacional e os projetos de vida. Ademais, impactaram na diminuição
dos índices de risco social e violação de direitos; na ampliação do acesso aos
serviços socioassistenciais, evidenciando as potencialidades do território por
meio da apropriação dos espaços de vida e recursos desconhecidos.
O processo evidenciou, ainda, que a(o) terapeuta ocupacional
amplia e diversifica as áreas de conhecimento das equipes no âmbito do PAIF e
ProJovem, integrando instrumentos teóricos metodológicos específicos da terapia
ocupacional social aos instrumentos do serviço social, da psicologia, da
pedagogia, e outros, possibilitando a implantação de novos recursos para o
atendimento individual, familiar e comunitário.
Todas as ações relatadas aconteceram presencialmente, antes
da pandemia da CoVid-19. A partir do início da pandemia no Brasil, em março de
2020, com a adoção das medidas de distanciamento social e mediante as
orientações da UFES, as atividades presenciais do projeto foram interrompidas e
ainda não foram retomadas até o momento da publicação deste artigo. Desde
então, o grupo vem se organizando com acompanhamentos remotos e ações de apoio
ao CRAS, com vistas a prevenir a ruptura das redes
sociais de suporte e informar sobre as medidas de prevenção à CoVid-19.
Com relação aos acompanhamentos remotos, o projeto tem
focado em ações com os adolescentes do ProJovem por haver maior possibilidade
de interações virtuais com este público, embora muitas dificuldades de acesso à
tecnologia e à internet se coloquem neste processo. Nosso foco junto às(aos)
adolescentes tem sido a realização de um mapeamento dos talentos do território
de Maruípe para posterior divulgação destes fazeres nas redes sociais do
projeto, como uma estratégia de apoio aos comerciantes locais que tem lutado,
diariamente, pela própria subsistência.
Pretendemos, assim que possível, retomarmos as atividades
presenciais. Este projeto, construído a muitas mãos, tem possibilitado às(aos)
estudantes vivências neste importante equipamento do SUAS, bem como a
divulgação do trabalho da terapia ocupacional social e a contribuição, junto a
outras categorias profissionais, para a proteção social da população da região
de Maruípe em tempos tão adversos.
Referências:
ALMEIDA, Marta Carvalho de; SOARES, Carla Regina Silva;
BARROS, Denise Dias; GALVANI, Debora. Processos e práticas de formalização da
Terapia Ocupacional na Assistência Social: alguns marcos e desafios. Cad. Ter. Ocup. UFSCar, São Carlos, v.
20, n. 1, p. 33-41, 2012.
BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à
fome. Secretaria Nacional de Assistência Social. Política Nacional de Assistência Social. Brasília: MDS, 2004.
BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à
Fome – MDS. Norma Operacional Básica do
Sistema Único de Assistência Social - NOB/SUAS. Brasília: MDS, 2005.
BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à
Fome. Resolução nº 17, de 20 de junho de 2011. Ratificar a equipe de referência
definida pela Norma Operacional Básica de Recursos Humanos do Sistema Único de
Assistência Social – NOB-RH/SUAS e Reconhecer as categorias profissionais de
nível superior para atender as especificidades dos serviços socioassistenciais
e das funções essenciais de gestão do Sistema Único de Assistência Social –
SUAS. Diário Oficial da União, Poder
Executivo, Brasília, DF, 21 jun. 2011.
OLIVEIRA, Marina Leandrini de; PINHO, Roberta Justel do;
MALFITANO, Ana Paula Serrata. O cenário da inserção dos terapeutas ocupacionais
no Sistema Único de Assistência Social: registros oficiais sobre o nosso
percurso. Cad. Bras. Ter. Ocup., São
Carlos, v. 27, n. 4, p. 828-842, dec. 2019.
Texto escrito por:
Giovanna Bardi – professora do
Departamento de Terapia Ocupacional da UFES e coordenadora do projeto de
extensão
Maria Daniela Corrêa de Macedo – professora do Departamento
de Terapia Ocupacional da UFRJ e orientadora do estágio no campo social na UFES
durante parte do processo descrito
Gustavo Artur Monzeli – professor do Departamento de Terapia
Ocupacional da UFPB e orientador do estágio no campo social na UFES durante
parte do processo descrito
Luciana Siqueira da Costa – terapeuta ocupacional do
Departamento de Terapia Ocupacional da UFES
Daniela Colatto – coordenadora do CRAS da região de Maruípe
Iamara Santos Paula – estudante do curso de Terapia
Ocupacional da UFES
Comentários
Postar um comentário