Território e terapia ocupacional social: subsídios para a prática no Sistema Único de Assistência Social (SUAS)
Território é um conceito amplamente
utilizado por diversas áreas de saberes e de práticas, compreende múltiplas
dimensões e concepções, desde as físicas-espaciais, até as culturais, as socioeconômicas
e as políticas. Um dos autores brasileiros mais reconhecidos por seus estudos
sobre território é o geógrafo Milton Santos (nascido em Brotas de Macaúbas/ BA
em 1926 e falecido em 2001 aos 75 anos, na cidade de São Paulo). Ele definiu
território como o espaço geográfico propício para trocas, de reconhecimento, identidade
e de pertencimento, em correlação direta ao lugar onde as pessoas constroem
práticas e processos sociais, circulam, vivem seus cotidianos, suas
experiências e tecem relações. O autor ainda apresenta o território como a base do trabalho, da residência,
das trocas materiais e espirituais, enfim, onde a vida acontece (Milton Santos,
1998).
Tratando-se da vida e de como ela
acontece, é importante destacar como essa dinâmica se constrói de forma
distinta para os inúmeros e diferentes atores, inclusive a partir do território
que estes ocupam; nesta lógica, podemos entender o território também como
expressão de dinâmicas sociais mais amplas, como, por exemplo, a desigualdade
social, ao mesmo tempo em que se faz (re)produtora dessa dinâmica. Cabe aqui um
exemplo: imagine um jovem que não circula pela cidade, para além do entorno de
seu lugar de moradia, por não ter dinheiro para transporte público e que, ao
mesmo tempo, por não circular pela cidade, acaba tendo menos acesso às
informações sobre vagas de trabalho e/ou aos programas de capacitação para o
trabalho, que poderiam ajudá-lo a melhorar essa condição de vulnerabilidade
social em que se encontra. Esse exemplo pode, em muito, ser complexificado, à
medida que se pensa na precariedade da rede de transportes que serve seu bairro
ou, ainda, nos preconceitos que esse jovem enfrenta ao dizer, numa possível
entrevista de emprego, que mora em um bairro
“mal visto” pelo restante da cidade, tido como violento, por exemplo.
Nessa perspectiva, pode-se dizer que
ser/pertencer a um determinado território imprime marcas sobre as
possibilidades dos sujeitos, sejam de circulação, sejam de acesso a bens e
serviços, assim como há uma precarização das condições de vida que circunscreve
os sujeitos a determinados espaços sociais. É algo cíclico e dinâmico. Por
isso, entende-se o território e o uso dele, a partir da ideia de “território
usado”, de Milton Santos (1988), como uma unidade de grande importância para/no
trabalho técnico, incluindo aquele que se articula com o Sistema Único de
Assistência Social (SUAS).
Acredita-se que a terapia
ocupacional tem possibilidades de contribuir com esse debate, sobretudo com o
aporte da subárea da terapia ocupacional social que, desde a década de 1990, ao
admitir que “a pessoa não pode ser cindida de seu contexto e das práticas
históricas das quais faz parte” (Denise D. Barros, 2004, p. 93), tem
reconhecido na dimensão territorial e comunitária um espaço privilegiado de
intervenção e de possibilidades de
expressões concretas de vida, o que inclui o (re)conhecimento dos elementos que
se tem na criação de soluções para problemas reais (Ana Paula S. Malfitano;
Pamela C. Bianchi, 2013), fornecendo subsídio para a produção de estratégias
eficazes para o trabalho (Denise D. Barros, 2004).
Para Bianchi e Malfitano (2022,
p.20), território na terapia ocupacional diz respeito à análise de diferentes
aspectos: “aquilo que nossos olhos conseguem alcançar: a materialidade expressa
nas construções, ruas, árvores, praças, carros e pessoas circulando; inclui-se
ainda aquilo que não conseguimos ver: a história que permeia as edificações e
as vidas ali construídas, as relações estabelecidas entre as pessoas, a
cotidianidade que impõe maneiras de conduzir os tempos, os poderes que se dão
para além das negociações face a face e implicam na condução das vidas”. Neste
sentido, a atuação da terapia ocupacional a partir do território, além de
promover intervenções nos espaços cotidianos de grupos e sujeitos das ações,
retrata uma estratégia de ação ao preconizar o desenvolvimento de atividades
próximas ao seu público-alvo, seja fisicamente – no sentido geográfico – ou
próximas de seu contexto – ao considerar os aspectos sociais, históricos,
econômicos, políticos e culturais existentes (Roseli E. Lopes; Patrícia L. O. Borba;
Gustavo A. Monzeli, 2013).
Abaixo, apresentamos algumas
reflexões que temos feito sobre como esses referenciais anunciados podem
contribuir para as práticas da terapia ocupacional nos serviços que compõem o
SUAS, a partir de seus diferentes níveis de proteção social.
Na proteção social básica - Retomando o território como o locus onde acontece a vida cotidiana e se expressam suas
possibilidades concretas, compreendemos que é no território que conseguimos
identificar e reconhecer as vulnerabilidades sociais e as diversas
problemáticas que incidem sobre a vida das pessoas. Acreditamos que por meio do
território - considerando seus aspectos sociais, históricos, econômicos,
políticos e culturais - é que conseguimos conhecer os recursos existentes para
o enfrentamento das vulnerabilidades, das violências e das ameaças aos
direitos, como, por exemplo, as redes de suporte pessoal dos sujeitos.
Nessa direção, o intuito do trabalho do terapeuta ocupacional seria fomentar estratégias para o fortalecimento das redes de suporte pessoal e social de sujeitos em contextos de vulnerabilidade social; para além de realizar visitas domiciliares, estratégias de busca ativa para serviços ou andar pelo território, a prerrogativa seria acompanhar mais sistematicamente sujeitos individuais ou coletivos com demandas específicas e singulares que trazem rebatimentos importantes sobre a produção de suas redes de suporte, fragilizando-as [1]. Considerando as diferentes realidades dos sujeitos, pensa-se na importância e necessidade de destinar ações diferenciadas, que estejam contextualizadas e próximas às suas realidades. Assim, a proposta é potencializar sua(s) rede(s), antes da sua fragmentação, no sentido de prevenção de rupturas dos laços sociais.
Assim, a compreensão sobre o território, suas vulnerabilidades, conflitos e potências implica em sustentar a presença e estreitar os laços com os diferentes atores que ali habitam, privilegiando o fortalecimento da convivência sociocomunitária, dos espaços de encontro e do estreito diálogo junto às lideranças comunitárias, coletivos e associações de moradores.
Na proteção social especial de média
complexidade
- Aposta-se no território como potencial espaço de articulação e dinamização da rede de atenção, outras duas
tecnologias de ação da terapia ocupacional social (Roseli E. Lopes et al.,
2014). Pensando a situação de violação de direitos já colocada neste nível de
atenção, espera-se, com essas tecnologias, produzir enfrentamentos a essas
situações em um plano individual, mas também grupal e coletivo em articulação
com as políticas públicas e a gestão em diversos níveis. Com isso, busca-se
trabalhar a produção de corresponsabilidades e elaborações conjuntas entre
diferentes equipamentos, instituições, espaços e atores sociais, de diferentes
setores em torno de objetivos comuns, cada um com seus recursos possíveis.
Nesta direção, pensa-se o
fortalecimento dos espaços públicos, a articulação e a dinamização de redes
formais e informais de suporte dos sujeitos e/ou coletivos específicos e de
recursos do/no território e para além dele, como estratégias para a garantia do
acesso aos direitos e à participação social dos grupos vulnerabilizados, na
garantia do acesso a bens e serviços sociais e para reaproximação de uma cultura
de direitos e da produção de experimentações emancipatórias (Roseli E. Lopes et
al., 2014; Lívia Pan et al., 2021).
Na proteção social especial da alta complexidade, entende-se que a abordagem territorial-comunitária é importante para pensar a produção de estratégias de enfrentamento à cultura de institucionalização. Por exemplo, realizar atividades fora os espaços das instituições onde sujeitos e grupos vivem, propicia o reconhecimento da cidade como seu local de vida, a reflexão sobre possibilidades concretas de reinserção no território onde vive, tanto pelo trabalho, quanto também pela cultura, lazer e socialização. Gonçalves (2016)[2], em um relato de experiência com jovens em conflito com a lei, que estavam em cumprimento de medida de internação, demonstra que fruição pela cidade é uma importante estratégia para conhecimento do território e reconhecimento desse território espaço de possibilidades para si; para ampliação de repertório, e para fomento de reconhecimento de si no/a partir do território, ou seja, de fomento a pertencimentos outros.
Promover a circulação de sujeitos em vulnerabilidade social por espaços fora daqueles de seu convívio cotidiano, desdobra-se na possibilidade de serem vistos e de verem coisas diferentes daquelas costumeiras acessadas pelos seus modos de vida e repertórios, procurando reverter a lógica da segregação a que estão sujeitos pessoas e grupos em situação de vulnerabilidade social (Marina J. Silva; Ana Paula S. Malfitano, 2020) estão submetidos. Ao mesmo tempo, trabalha-se pelo fomento à participação social e pelo efetivo exercício de cidadania com a abertura de espaços de legitimidade e de reconhecimento desses sujeitos (individuais e coletivos), retirando-os da invisibilidade e/ou da visibilidade negativa imposta pela lógica do desprestígio social que ocupam.
Quanto a essa temática, ainda há
muito para ser dito e produzido em termos de reflexões e práticas. Para quem se
interessa por essa discussão, indicamos a leitura das referências que
utilizamos na construção desse texto. Convidamos todas a participarem e
refletirem conosco sobre as construções teórico-metodológicas de uma ação
territorial na prática de terapeutas ocupacionais no SUAS!
Referências:
BARROS, D. D. Terapia
ocupacional social: o caminho se faz ao caminhar. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, v. 15,
n. 3, p. 90–97, 2004. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rto/article/view/13945/15763
BIANCHI, P. C.; MALFITANO, A. P. S.
Atuação profissional de terapeutas ocupacionais em países latino-americanos: o
que caracteriza uma ação territorial-comunitária? Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, v. 30, 2022.
Disponível em: https://www.scielo.br/j/cadbto/a/xMRDSSbj9QsmKwnDpYJRxwc/#:~:text=Os%20resultados%20destacaram%20cinco%20estrat%C3%A9gias,atividades%3B%20a%20horizontalidade%20e%20disponibilidade
GONÇALVES, M. V. Eu nem sabia que podia entrar aqui: promoção de cidadania cultural como experiência de ressignificação de identidade de jovens em conflito com a lei. Cadernos de Terapia Ocupacional da UFSCar, v. 24, p. 127-137, 2016
LOPES, R. E., BORBA, P. L. DE O.; MONZELI, G. A. Expressão livre de jovens por meio do Fanzine: recurso para a terapia ocupacional social. Saúde e Sociedade, v. 22, n.3, p.937–948, 2013.
LOPES, R. E. et al. Recursos e
tecnologias em Terapia Ocupacional Social: ações com jovens pobres na cidade. Cadernos de Terapia Ocupacional da UFSCar,
v. 22, n. 3, p. 591–602, 2014. Disponível em: http://doi.editoracubo.com.br/10.4322/cto.2014.081
PAN, L.C.; OLIVEIRA, M.L.; SILVA,
M.J.; MALFITANO, A.P.S.; LOPES, R.E. Proteção social e experiências
terapêutico-ocupacionais: a vida na pandemia de Covid-19. Interface (Botucatu). v. 25 (Supl. 1), e200753, 2021. Disponível em:
https://doi.org/10.1590/interface.200753
MALFITANO, A. P. S.; BIANCHI, P. C. Terapia ocupacional e atuação em contextos de vulnerabilidade social: distinções e proximidades entre a área social e o campo de atenção básica em saúde. Cadernos de Terapia Ocupacional da UFSCar, V.21, n.3, 2013.
SANTOS, M. O retorno do território. In: SANTOS, M.; SOUZA, M. A. DE; SILVEIRA, M. L. (Orgs.). Território: globalização e fragmentação. 4a. ed. São Paulo: Hucitec, 1998. p. 255–261.
SANTOS, M. O espaço cidadão. 7a. ed. São Paulo: EdUSP, 2007, 176 p.
SILVA MJ, MALFITANO APS. Oficinas de atividades, dinâmicas e projetos em Terapia Ocupacional Social como estratégia para a promoção de espaços públicos. Interface (Botucatu). V.25, ; 25: e200055, 2021. Disponível em : https://www.scielo.br/j/icse/a/gtczzSqV3DqgrcSyscCwsVp/?lang=pt#:~:text=As%20oficinas%20de%20atividades%2C%20din%C3%A2micas,direitos%20e%20%C3%A0%20cidadania%207
Texto escrito por:
Marina Jorge da Silva - Universidade
Federal de São Carlos (UFSCar)
Email: marinajorge@ufscar.br
Beatriz Prado Pereira - Universidade
Federal da Paraíba (UFPB)
Email: beatriz.prado@academico.ufpb.br
Gabriela Pereira Vasters -
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Email:gvasters@unifesp.br
Monica Villaça Gonçalves -
Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
E-mail: monica.v.goncalves@ufes.br
Pamela
Cristina Bianchi - Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)
Email: pamelacbianchi@gmail.com
*Pesquisadoras do Grupo de Pesquisa
do CNPq: Nas Ruas: Cidades, Espaço
público, Território e Terapia Ocupacional
[1] Nesta
direção, vale a visita ao artigo “Entre fluxos, pessoas e territórios:
delineando a inserção do terapeuta ocupacional no Sistema Único de Assistência
Social” de 2017, onde Borba e demais autoras descrevem o Acompanhamento Singular e Territorial como um dos recursos e
tecnologias da terapia ocupacional social que favorece a articulação da rede e
fortalecimento dos usuários dos serviços. Link para acesso: https://www.cadernosdeterapiaocupacional.ufscar.br/index.php/cadernos/article/view/1429.
[2] Para maior
detalhamento, ver: GONÇALVES, M. V. Eu nem sabia que podia entrar aqui:
promoção de cidadania cultural como experiência de ressignificação de identidade
de jovens em conflito com a lei. Cadernos
de Terapia Ocupacional da UFSCar,
v. 24, p. 127-137, 2016. Disponível em:
https://www.cadernosdeterapiaocupacional.ufscar.br/index.php/cadernos/article/view/1289#:~:text=Estudo%20de%20Caso-,%E2%80%9CEu%20nem%20sabia%20que%20podia%20entrar%20aqui%E2%80%9D%3A%20promo%C3%A7%C3%A3o%20de,as%20identity%20meaning%20experience%20of
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